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Iama


Postado em 20.03.2023 22:41


Capa


Autor(es): Alexandre Ivanovitch Kuprin

Editora: Edições de Ouro

Páginas: 373

Idioma: português

ISBN-13: ?

ISBN-10: ?


Do mesmo autor que [O caminho da Glória](/books/o-caminho-da-gloria/), esse *Iama* me agradou bem mais. É uma novela que se passa principalmente no bairro homônimo ao título no final do período czarista.


Esse bairro era uma localidade praticamente inteira dedicada às "casas de tolerância" (a forma como prostíbulos são chamados na maior parte dessa tradução). Existiam as casas de "alto nível", que cobravam 3 rublos por visita, as de "médio nível", que cobravam 2, e os estabelecimentos mais pobres, de 50 copeques por visita.


Acompanhamos as histórias das trabalhadoras da casa de Ana Marcóvna, uma das de 2 rublos, de "médio nível".


A novela é dividida em 3 partes. Resumindo bastante:


Na 1ª metade da 1ª parte, somos apresentados aos personagens e à Iama. Na metade final dessa parte, um grupo de estudantes universitários visita na casa de Ana Marcóvna e discutem sobre o fenômeno da prostituição. Um dos estudantes acaba levando uma prostituta consigo para "salvá-la".

Na 2ª parte acompanhamos principalmente as tentativas do estudante e seus companheiros nessa missão de "salvamento", de educar a prostituta para ser um "membro direito" da sociedade. A moça acaba expulsa e precisa retornar à Iama.

Na 3ª parte, temos a derrocada - bem trágica - de algumas das personagens e da própria localidade, que termina destruída e até com o nome trocado.


Achei o ritmo um pouco lento na 1ª metade da 1ª parte, mas depois disso ficou muito bom. Passei a me importar com muitas das personagens e a entender melhor suas personalidades, que tinham profundidade. Não eram esteriótipos ou caricaturas de "mulheres sujas" ou "coitadinhas".


E, apesar de não hesitar em criticar as contradições da sociedade que permitia que aquelas mulheres sofressem tanto, as personagens não eram estudas a distância, com a frieza de um cientista que conduz ensaios num laboratório. Nisso acho que reside a maior qualidade dessa história, é um livro honesto e humano.


Citando [Carlos Heitor Cony](https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Heitor_Cony) na introdução da edição que li:


> Escrito entre 1909 e 1913, *Iama* retrata o quotidiano, as misérias de um bairro dedicado ao meretrício. É um retrato fiel de qualquer bairro análogo no mundo antigo ou moderno. Kuprin não procurou nem escreveu de fato uma epopeia. Colocou mais sinceridade que arte em sua obra. Mais humanidade que ciência. Pode-se dizer que a visão de Kuprin sobre o problema da prostituição era romântica e não social. Não fez uma investida "à Zola" nem soltou um grito abafado como Dostoiévski em sua casa dos mortos. Preferiu o meio-tom, até mesmo o lirismo. Suas prostitutas são líricas - e já que estamos no terreno das comparações, podemos lembrar o nome de Murger. Daria uma ótima ópera o seu romance. Mas nunca um filme de Eisenstein.


Uma pena Kuprin não ser tão traduzido quanto outros russos para o português.


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Acho que um dos poucos momentos em que o autor coloca suas palavras diretamente na boca de um personagem para comentar de forma didática sobre a prostituição e sua representação na arte é numa fala longa do jornalista Platónov.


No diálogo abaixo[^1], é ele que começa. Está falando com Lihónin (o universitário que tenta "salvar" uma prostituta):


> — Está bem. Mas nada de pieguices, não é verdade? A tua saúde, meu amigo. Tomemos outro exemplo. Um clássico francês descreve os pensamentos e as sensações de um homem condenado à pena capital. Fá-lo de modo elevado, vigoroso, brilhante, mas, ao lê-lo, não sinto nenhuma emoção, nenhum sentimento de indignação; apenas tédio. Mas eis que me cai nas mãos uma curta notícia sobre a execução dum assassino em não sei que cidade da França. O promotor, que presenciava a derradeira "toilette" do criminoso, viu que ele calçava os sapatos sobre os pés nus e exclamou: "Imbecil! E as meias?" O réu encarou-o com ar pensativo e perguntou: "Valerá a pena?" Compreendem? Esta curta réplica foi para mim como uma pedrada no crânio. Num repente, percebi todo o absurdo e todo o horror da morte imposta como castigo... Emfim, já que falamos em morte, vejamos outro caso. Faleceu um amigo meu, um capitão de infantaria, beberrão, boêmio e que era a criatura mais simpática do mundo. Não sei por quê, todos nós o chamávamos "capitão elétrico". Coube-me a tarefa de prepará-lo para o último desfile. Apanhei a sua túnica e comecei a colocar as dragonas. Como sabem, é preciso fazer passar por um orifício do botão um duplo cordãozinho, cujos extremos devem atravessar duas casas que há debaixo da gola, para serem atados depois num lugar do forro. Tentei realizar todo esse processo; fiz o primeiro nó e, ao pretender armar o laço final, não houve meio de consegui-lo: umas vezes porque uma das pontas ficava frouxa demais, e outras porque ficava muito curta. Estive a lidar com aquelas insignificâncias, mas, de repente, veio-me uma ideia muito simples: pareceu-me que seria muito mais prático atar com nó em lugar daquele complicado laço, pois, de qualquer maneira, ninguém o iria desfazer. Foi o quanto bastou para que eu sentisse a morte com todo o meu ser. Até aquele momento, via os olhos vidrados do capitão, apalpava a sua fronte gelada, mas tinha a impressão da morte; entretanto, foi suficiente pensar no laço que podia ser substituído por um nó e impôs-se-me a simples e dolorosa sensação do desaparecimento irrevogável de todas as nossas palavras, ações e sentimentos, do aniquilamento de todo o nosso mundo visível... Poderia citar uma centena de outros pormenores igualmente insignificantes, mas surpreendentes... Mesmo que só fosse acerca do que um combatente pensa na sua trincheira... Mas agora desejo sintetizar minhas ideias. Todos nós passamos com indiferença ao lado destas insignificâncias tão características, como se fôssemos cegos, como se não víssemos que elas abundam aos nossos pés. Mas chega o artista, olha-as, recolhe-as e com tal habilidade mostra à luz do sol aqueles retalhos de vida que nós ficamos assombrados. "Ah! meu Deus! Mas eu mesmo já vi tudo isto; apenas, não me ocorreu prestar um pouco mais de atenção". Mas os nossos artistas da palavra, os mais conscienciosos e sinceros artistas de todo o mundo, até agora, evitaram sempre abordar de frente a prostituição e descrever uma casa de tolerância. Por quê? Confesso que acho difícil responder a tal pergunta. Talvez fosse por repugnância, por fraqueza, pelo temor de passar por escritor pornográfico, ou simplesmente por causa do medo de que nossa crítica de comadres identificasse a obra do escritor com sua vida íntima e fosse vasculhar a sua roupa suja. Ou talvez eles não tenham bastante tempo, espírito de sacrifício e capacidade de autodomínio para introduzir-se nesse meio social e examiná-lo de perto, sem preconceitos, sem palavras sonoras, sem compaixão ovina, em toda a sua monstruosa simplicidade e seu ar de mera ocupação comercial. Ah! que livro impressionante e verdadeiro não se escrevia!

>

> — Mas já escrevem sobre esse tema - observou involuntariamente Ramsés.

>

> — Sim, escrevem - repetiu Platónov no mesmo tom. — Mas não há nessas obras mais que mentiras ou efeitos teatrais para o público de menor idade, ou então sutis simbolismos, compreensíveis somente para os sábios do futuro. Mas na verdadeira vida ninguém ainda pôs a mão. Um grande escritor - homem de alma cristalinamente pura e extraordinário talento artístico aproximou-se certa vez desse tema e tudo o que pode perceber um estranho ao meio refletiu-se em sua alma como num espelho. Mas ele não se atreveu a mentir e assustar as criaturas. Contentou-se em olhar para os cabelos do porteiro, ásperos como os pelos de um cão, e pensou: "E dizer que este homem também teve mãe!" O seu olhar inteligente e perscrutador percorreu os rostos da prostitutas e o seu espírito guardou para sempre aquelas imagens. Mas não ousou escrever sobre aquilo que não conhecia. É curioso que este escritor, encantador pela honestidade e pela veracidade, tenha observado mais de uma vez o mujik. Mas sentiu que a linguagem, o modo de pensar, a própria alma do povo eram para ele obscuros, incompreensíveis... Contudo, com fino tato, limitou-se a focalizar apenas um aspecto da alma popular; e o tesouro das suas magníficas observações foi desfigurado pelos olhos do homem da cidade. Foi intencionalmente que o mencionei. Entre nós, escreve-se sobre detetives, advogados, fiscais de consumo, pedagogos, promotores, policiais, oficiais de exército, senhoras sensuais, engenheiros, barítonos, e escreve-se muito bem: com inteligência e sutileza. Mas toda esta gente é lixo e a sua vida não é vida real, e sim uma coisa inventada, fantástica, inútil criação delirante da cultura literária. Mas há duas estranhas realidades, velhas como a humanidade: a prostituta e o mujik. E sobre eles nada sabemos, a não ser algumas representações adocicadas e superficiais, impregnadas de literatura. Pergunto-lhes: Que suco extraiu a literatura russa de todo o pesadelo da prostituição? Apenas Sônietchea Marmeládova. Que produziu sobre o mujik além de falsas e baratas pastorais populares! Uma única obra, mas que é realmente a maior do mundo, uma tragédia cujo realismo assoberba o espírito e arrepia os cabelos. Já sabem a que me refiro...

— "O pássaro no paul"... - disse Lihónin.

— Sim - respondeu o repórter, olhando o estudante com amizade e gratidão.

— No que se refere à Sônietchea, é um tipo abstrato - observou Iártchenco com segurança. Uma espécie de esquema psicológico...

>

> Platónov, que até aquele momento havia falado como que à sua vontade, animou-se de repente:

>

> — Já ouvi cem vezes esta interpretação, cem vezes! Mas não é verdade. Apesar da profissão degradante, da linguagem obscena, da aparência monstruosa de alcoolizada, lá está Sônietchea Marmeládova, viva, bem viva. O destino da prostituta russa! Oh! Que carreira trágica, dolorosa, sangrenta e estúpida! Aqui tudo se condena: o Deus russo, o abandono e o desleixo, o desalento russo na queda, a ignorância, a ingenuidade, a paciência, a falta de vergonha. Olhem, olhem bem para estas criaturas, que os senhores levam para os quartos! São todas umas crianças, nenhuma tem mais de onze anos. A sorte as impeliu para a prostituição, e, desde então, levam uma vida estranha, fantasmagórica como um folguedo, sem se desenvolver nem adquirir experiência, inocentes, crédulas, caprichosas, sem saber o que hão de dizer, nem o que hão de fazer meia hora mais tarde: absolutamente como crianças. Tenho observado esta luminosa e risonha meninice nas prostitutas mais velhas e desdenhadas, cheias de nódoas e arranhões como as éguas dos cocheiros de praça. Nunca desaparece nelas esta impotente piedade, esta inútil compaixão pelo sofrimento humano... Por exemplo...

>

> Platónov passeou lentamente o olhar pelos que estavam sentados e, movendo de repente a mão, disse com voz cansada:

>

> — Mas, enfim... Que diabo! Já discursei por dez anos no mínimo... E de que serve tudo isto?


Ao cabo dessas considerações, uma das prostitutas comenta:


> — Sim - exclamou de repente Manca Pequena. — Vejamos se há ao menos alguém que possa descrever deveras a nossa vida de p... infelizes.


[^1]:Esse trecho foi escaneado. O processo de OCR pode ter inserido erros.


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